Proibido chamar de 'você': Entenda prisão por desacato de soldado da PM durante perícia de saúde em hospital militar de SP
Especialistas dizem que hierarquia militar deve ser respeitada, mas não prevê punição para quem chama o superior por pronome e dizem que prisão é 'exagero...

Especialistas dizem que hierarquia militar deve ser respeitada, mas não prevê punição para quem chama o superior por pronome e dizem que prisão é 'exagero absurdo'. PM foi proibido de gravar a perícia; ao reclamar dessa postura dos superiores na consulta, soldado foi preso. Ouça o momento em que soldado é preso por desrespeito a médico militar em SP A prisão do soldado da Polícia Militar Lucas Neto durante a realização de uma perícia no hospital da PM do Tucuruvi, Zona Norte de São Paulo, levantou a questão sobre como devem ser tratados os superiores dentro da corporação. Para assegurar o afastamento da corporação em razão de uma lesão no ombro, o soldado foi à unidade de saúde para realizar o procedimento de avaliação na última quarta-feira (18) e recebeu voz de prisão do médico capitão que o atendeu. O argumento para prender o soldado foi que ele teria desrespeitado seu superior, o médico que é capitão e tem uma patente maior dentro da hierarquia da PM, ao dar as costas para o perito e chamá-lo de "você". Mas o que de fato aconteceu nesse episódio? O soldado realmente chamou o capitão de você? Isso constitui desacato e seria motivo suficiente para a prisão de Lucas Neto? A defesa do soldado sustenta que não. E apresenta argumentos com base em áudios gravados pelo próprio Lucas durante seu atendimento médico. O g1 teve acesso a esses áudios por intermédio do advogado Mauro Ribas Júnior, ex-policial militar que presta apoio no caso e defende vários policiais que são alvo de inquéritos, processos e investigações criminais (ouça acima). Soldado durante atendimento em hospital militar, onde foi acusado de desrespeito a superior Reprodução Mas vamos conhecer melhor a sequência de fatos para entender como o desfecho da situação acabou em uma voz de prisão. O caso também foi denunciado por outro ex-PM em um vídeo no Instagram. Lucas Neto chegou ao Hospital da Polícia Militar já acompanhado de sua advogada, Fernanda Borges de Aquino. De acordo com o relato no vídeo do Instagram, o soldado foi ao local acompanhado de Fernanda justamente pelo conhecimento prévio de que médicos militares têm tratado subordinados com desrespeito. ✅ Clique aqui para se inscrever no canal do g1 SP no WhatsApp Ao chegarem à sala em que seria realizada a perícia médica, segundo Mauro Ribas Júnior, a major-chefe do setor de perícias pediu que a advogada de Lucas deixasse a sala, até por ela estar gravando a cena pelo celular. O soldado, então, passou a gravar, por áudio, seu próprio atendimento. Na sala, além dele, permaneceram a major-chefe, dois tenentes e o capitão médico Marcelo Cavalcante Costa. Ao final do atendimento, Lucas se dirige ao médico dizendo que "isso não se faz", em referência à proibição da permanência da advogada na sala. Os dois, então, passam a discutir, e o capitão diz ao soldado que ele estaria lhe faltando com o respeito (confira nos áudios). Quando Lucas Neto pergunta à major se está liberado para ir embora, o médico dá voz de prisão ao soldado. Em nenhuma passagem dos áudios fornecidos ouvimos o acusado chamando o superior de "você". Após a prisão, a advogada do soldado acionou o advogado Mauro Ribas Júnior, que compareceu ao hospital. Ribas foi expulso da PM após ter sido condenado a 33 anos de prisão, em regime fechado, pelo assassinato de duas pessoas ocorrido em 2010. Após a expulsão, ele conseguiu reverter a condenação na Justiça, mas já tinha saído da corporação. Hoje atua profissionalmente na defesa de vários policiais que são alvo de inquéritos, processos e investigações criminais. Lucas Neto passou a noite de quarta (18) no Presídio Militar Romão Gomes (PMRG). Na manhã da quinta-feira (19/6), o soldado foi solto após passar por audiência de custódia, de acordo com a Polícia Militar. O caso foi encaminhado à Corregedoria da PM, onde está em investigação. Em nota emitida pela Secretaria da Segurança de São Paulo (SSP), a Polícia Militar informou que “um policial militar foi preso em flagrante durante atendimento médico realizado no Hospital da Polícia Militar por infração ao Código Penal Militar (Artigo160). Ele foi encaminhado ao Presídio Militar Romão Gomes (PMRG)”. PM foi preso em hospital militar por desrespeito a superior Reprodução Pode chamar de 'você'? O Artigo 160 do Código Penal Militar citado na nota da SSP define como crime “desrespeitar superior diante de outro militar”, com pena de detenção de três meses a um ano, caso o fato não constitua crime mais grave. A Lei Complementar 893/2001, que institui o Regulamento Disciplinar da Polícia Militar no Estado de São Paulo, não faz nenhuma menção específica ao uso da palavra "você" como sendo desrespeitoso. Na seção que define quais as transgressões disciplinares previstas, uma das citadas é "dirigir-se, referir-se ou responder a superior de modo desrespeitoso", sem apontar qualquer termo que possa especificamente se enquadrar nessa situação. "O soldado nunca chamou o médico de você, apenas se referiu a ele como senhor e comandante", afirma Mauro Ribas, que também nega que Lucas tenha dado as costas para o capitão. "A major o liberou e ele virou as costas para ir embora", diz. O que dizem os especialistas "O militar deve se dirigir a todo superior como senhor, isso é regra", afirma Ribas. "Só que o não chamar de senhor é cabível de uma transgressão disciplinar e não constitui um crime militar de desrespeito ao superior. Para ser crime tem de ir além, tem de ser uma injúria, um desacato, e não simplesmente chamar de você. Mesmo que ele tivesse chamado o médico de você, não caberia a autuação em flagrante, e sim uma comunicação disciplinar, um processo administrativo. O você não criminalizaria a situação", diz. O coronel José Vicente, que é especialista em Segurança Pública e fez parte da Polícia Militar por mais de 30 anos, disse que nunca viu na história da corporação uma prisão de alguém que chamou seu superior de “você”. “Na hierarquia militar geralmente há o tratamento dos superiores por ‘o senhor major’, o ‘senhor coronel’, o ‘senhor capitão’, nunca com o pronome você. Mas isso é algo que se corrige com uma conversa, um café. Eu estive na corporação por mais de trinta anos e estou outros trinta fora. Nunca vi uma prisão por esse motivo. E acho um exagero e um excesso do ordenamento militar que precisa ser corrigido”, afirmou ao g1. “Eu mesmo estive nesse mesmo hospital militar dias atrás e o médico major me tratou o tempo todo de você. Eles também não levantaram quando o superior chegou, atitude a ser tomada, dentro da corporação, como um sinal de respeito. Não reclamei porque o ambiente lá é totalmente ‘apaisanado’ [onde militares não estão de uniforme da corporação]. Mas eu comentei depois com o superior dele dizendo que precisa ter mais respeito, porque caso aparecesse alguém da ativa, isso viraria um ruído. Mas jamais pensei em dar voz de prisão e nada disso. É um absurdo que alguém tenha mandado prender alguém só por esse motivo”, contou o coronel aposentado da PM. José Vicente comenta que um superior que trata o membro inferior da corporação de forma abusiva é igualmente passível de punição. “O respeito hierárquico não é só em uma direção. Um superior que trata o subordinado com desrespeito também pode ser punido, se o inquérito militar apontar que houve abuso e desrespeito com o subordinado. Já houve muitos casos em que esse tipo de abuso ficou comprovado e isso sim é um crime militar”, declarou. “Na minha visão é inadmissível que alguém mande prender, use a estrutura da polícia para transportar para um presídio, use os recursos financeiros da corporação só por causa de um pronome. O crime militar de hierarquia é quando uma ordem não é cumprida. E se há testemunha, aí sim se tem um crime militar consumado e que é possível de recolhimento para o presídio”, declarou José Vicente. VEJA MAIS: Adolescente é baleado e morto após tentar assaltar PM de folga em SP Adolescente é baleado e morto após tentar assaltar PM de folga em SP Ladrões usam controle clonado para roubar carro alugado de empresário na Zona Sul de SP; veja vídeo Homem rouba carro na Zona Sul de SP com chave clonada de carro